A última edição do Mental, em 2021, decorreu ainda sobre os efeitos da pandemia, e sobre todo o impacto que esta causou em termos de saúde mental nas populações atingidas. Mas, ao mesmo tempo, já se começava a viver uma esperança realista de mudança, trazida pelo advento da vacinação em massa, que prometia a possibilidade de retorno a uma vida ‘normal’. Um ano volvido, e sempre com uma crise climática em pano de fundo, estamos de novo mergulhados na incerteza, no medo, na angústia e na violência da morte, sem qualquer transição. Sabemos bem que, para as sociedades ocidentais, o tema da morte é quase sempre encoberto, o que tem levado a uma incapacidade crescente de lidar com a angústia que a morte gera. De certa maneira, não estamos sociologicamente preparados para esta presença. Com o COVID-19 primeiro, e a emergência da guerra na Europa mais recentemente, a confrontação com a morte passou a ser vivida em direto, através dos meios de comunicação que incessantemente nos trazem imagens e eventos terríveis. É precisamente nestas situações de crise global que a arte em geral e o cinema em particular se podem tornar ferramentas poderosas e eficazes, capazes de ajudar as pessoas a encontrar formas mais adaptativas de lidar com a ansiedade e a angústia. Edgar Morin descreveu o cinema como um “espelho antropológico” da natureza humana, capaz de gerar no espectador uma dupla consciência: uma ilusória (de identificação com a história narrada no filme) e uma real (a parte do espectador que permanece ligada à sua vida quotidiana real). Dessa forma, o cinema pode oferecer às pessoas a possibilidade de entrar em um novo mundo e de estabelecerem processos identificatórios com narrativas e personagens, sem, no entanto, se sentirem desconfortáveis com isso. Mas se o cinema constitui desde há muito um pilar da nossa cultura, alvo de inúmeros debates e com uma presença constante nos media, o mesmo não pode ser dito sobre a saúde mental. Apesar do recente aumento de exposição mediática, paradoxalmente decorrente do estado de crise a que temos estado continuadamente sujeitos, o discurso sobre saúde mental é ainda muito escasso para a importância que merece. Nesse sentido, acreditamos sinceramente que há grandes benefícios potenciais com a amplificação progressiva do discurso sobre saúde mental, nomeadamente nas artes: a utilização de filmes como plataforma de discussão contribui indiscutivelmente para trazer a saúde mental para o centro das atenções mediáticas, dando-lhe uma nova visibilidade. É tudo isto que temos de agradecer ao trabalho incansável da Ana Pinto Coelho e do João Gata, assim como de toda a talentosa equipa que, edição após edição, nos traz um novo festival de cinema, sempre renovado, em que as narrativas dos filmes constituem um estímulo irrecusável à descoberta e à reflexão sobre uma realidade com a qual não estamos ainda suficientemente preparados para lidar, enquanto sociedade. Num momento em que se está a processar a uma profunda reforma das estruturas e modelo organizativo dos serviços em Portugal, são estas iniciativas oriundas da sociedade civil que melhor contribuem para as mudanças mais complexas, difíceis e demoradas, mas simultaneamente mais decisivas, que as sociedades hoje em dia enfrentam relativamente à saúde mental das suas populações: as da luta contra a exclusão, o estigma, a discriminação e a indiferença. Por isso mesmo, esta 6ª edição do Festival Mental de Cinema, já em plena maioridade, merece todo o apoio e aplauso da Coordenação Nacional de Políticas de Saúde Mental. É para nós um orgulho estarmos associados a esta iniciativa. Com temáticas focadas no medo, no trauma, superação e nos direitos humanos, entre outras dimensões, dificilmente o festival estaria mais ajustado aos tempos que temos vivido. A todos, equipa de coordenação, membros do júri, autoridades locais, realizadores, atores, queremos deixar o testemunho da nossa sincera gratidão. E agora, é tempo de assistir, debater, e acima de tudo, de desfrutar. 05
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